Hoje falaremos sobre a legalização do aborto. E aí? Você é a favor ou contra?
Fique com a matéria retirada do site : http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR77047-6014,00.html
O ministro da saúde, José Gomes Temporão, quebrou uma longa tradição. Foi a primeira autoridade a defender publicamente um plebiscito sobre a legalização do aborto. Não esperou nem se acomodar numa das cadeiras mais disputadas pelos políticos brasileiros. No discurso de posse, no mês passado, prometeu melhorar o planejamento familiar e a atenção ao aborto inseguro. Ao falar sobre o assunto, abriu o debate sobre a mais emocional das questões políticas e morais que o Brasil enfrenta hoje.
O ministro não é um político de carreira. Como diretor do Instituto Nacional do Câncer, administrou - de maneira competente - uma profunda crise em 2003. Temporão é um técnico da saúde. Talvez por isso tenha se atido apenas ao aspecto pragmático da questão. Nas últimas semanas, tem sido criticado pela Frente Parlamentar Mista em Defesa da Vida - Contra o Aborto. Na segunda-feira 9, foi surpreendido por um protesto popular em Fortaleza. Ele tratou de deixar claro que a defesa do plebiscito é uma posição pessoal, e não uma decisão de governo.
A discussão sobre o tema é mais que bem-vinda. E urgente. Estima-se que cerca de 1 milhão de abortos clandestinos sejam realizados no Brasil a cada ano. Parece ser a hora de lançar luzes sobre uma realidade inconfessável presente em grande parte das famílias brasileiras. O aborto é proibido no Brasil pelo Código Penal de 1940. A pena é de detenção de um a três anos. Só pode ser realizado legalmente nos casos de estupro ou risco de morte para a mulher. Nos casos de fetos sem cérebro (anencefalia), a mãe só pode interromper a gravidez com autorização judicial. O Brasil faz parte de um bloco de países cujas leis sobre o aborto são restritivas (veja ilustração na seqüência da matéria). Mas são raríssimos os casos de mulheres presas por terem interrompido a gravidez. "Aborto não dá cadeia no Brasil", diz o promotor Diaulas Costa Ribeiro, do Distrito Federal. "Quando o caso chega ao Ministério Público, o promotor faz um acordo com a mulher pela suspensão do processo. Em geral, ela distribui cestas básicas, e o caso é encerrado."
Mais de 60% da população mundial vive em países onde o aborto induzido é permitido de alguma forma. Existem quatro países em que ele não é aceito em nenhuma hipótese: Chile, El Salvador, Malta e Cidade do Vaticano. No Reino Unido (com exceção da Irlanda do Norte), o aborto foi legalizado em 1967. Na ocasião, a lei era uma das mais liberais da Europa. Mas a polêmica não foi encerrada. O aborto é permitido até a 24a semana de gestação. Uma pesquisa realizada no ano passado mostrou que 42% dos britânicos defendem a redução desse limite.
Há todo tipo de argumento contra e a favor da legalização do aborto - na linha das idéias insólitas, alguns afirmam que o aborto legal pode reduzir a violência, pois nasceriam menos crianças indesejadas que poderiam se tornar criminosos (leia a reportagem nesta edição). Por enquanto, a população brasileira não se mostra disposta a alterar a legislação. Eis o que diz uma pesquisa do instituto Datafolha realizada com 5.700 pessoas no fim de março: 65% dos entrevistados acham que a lei deve continuar como está. O índice é o maior já verificado desde que a pesquisa começou a ser feita, em 1993.
No Brasil, vozes respeitáveis se erguem na defesa das duas posições. "O debate sobre aborto está muito mal colocado no Brasil. Não cabe a ninguém ser a favor ou contra o aborto. O razoável é dizer que cabe à mulher decidir. No cenário internacional, não há mais espaço para dúvida. O aborto vai ser descriminalizado no Brasil. É uma questão de tempo. Por influência da Igreja Católica, o Brasil aprovou o divórcio com quase cem anos de atraso em relação à França", diz Roberto Arriada Lorea, diretor do Departamento de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. "Sou favorável a que a legislação seja mantida como está. Aprovar o aborto em outros casos além de estupro e risco para a mãe é um crime contra a vida", afirma Cláudio Fonteles, subprocurador-geral da República.
A experiência tem mostrado que a visão dos eleitores pode mudar quando o debate se torna mais consistente. Foi o que aconteceu em Portugal. Na semana passada, o aborto nas dez primeiras semanas de gestação foi legalizado no país depois que 59% dos eleitores apoiaram a medida em um plebiscito realizado em fevereiro. Uma tentativa anterior de legalizar o aborto no país, há nove anos, tinha fracassado. Na ocasião, a consulta não atingiu os 50% de eleitores necessários para que fosse considerada válida.
As mudanças em relação ao aborto costumam ser lentas, cheias de idas e vindas. Os Estados Unidos estão divididos sobre o tema desde 1973, quando a Suprema Corte decidiu que seus Estados não poderiam proibir o aborto no primeiro trimestre de gestação, no caso conhecido como Roe versus Wade. Jane Roe era o pseudônimo de Norma McCorvey, grávida de 21 anos que entrou na Justiça pelo direito de abortar no Estado do Texas. A decisão saiu em seu favor, mas ela nunca abortou. Deu a filha para adoção. Hoje, mudou de lado e milita pela proibição do aborto no país. Henry Wade era o procurador de justiça do distrito de Dallas. Representava o Texas no caso. Em 1992, o tema voltou a ser apreciado pela Justiça americana. A Suprema Corte não mudou de posição, mas admitiu restrições, como a autorização dos pais no caso de menores.
De lá para cá, Estados mais conservadores tentam colocar o tema em pauta. É o caso de Dakota do Sul, que aprovou uma lei que obriga o médico a dizer para a gestante que o aborto "acabaria com a vida de um ser humano vivo, único, inteiro e independente". Com o aumento do número de juízes conservadores na Suprema Corte, defensores do aborto legal temem que o precedente Roe versus Wade seja revertido. Tal hipótese é considerada remota pelos especialistas. "A Suprema Corte não vai querer voltar a uma discussão que divide tanto a sociedade americana. Nos Estados Unidos, há conservadorismo político, mas também há conservadorismo jurídico. Lá, a jurisprudência existe para ser mantida", diz Luís Roberto Barroso, professor de Direito Constitucional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
A França permite o aborto até a 12a semana de gestação. A decisão foi baseada num argumento diferente do americano. O país permite a prática não como um direito individual da mãe, mas por uma questão de saúde pública. De acordo com essa linha de raciocínio, o aborto legalizado - feito em hospitais públicos, e não clandestinamente - oferece menos risco à população feminina e custa menos para a sociedade. A instância que descriminalizou o aborto na França foi o Legislativo, não a Justiça, como nos Estados Unidos. Em 1975, uma lei francesa autorizou o procedimento para os casos em que a gravidez causasse angústia à mãe ou quando oferecesse riscos a sua saúde. A partir de 2001, o serviço do Estado que procurava desencorajar o aborto, o aconselhamento, deixou de ser obrigatório.
"A tradição francesa é enfatizar a saúde pública. É por esse ângulo que o ministro José Gomes Temporão tem tentado conduzir o debate", afirma a antropóloga Debora Diniz, diretora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. As declarações do ministro reavivaram o debate sobre o aborto no Brasil. "É ingenuidade achar que um fenômeno social possa ser corrigido por lei", diz o chileno naturalizado brasileiro Aníbal Faúndes, coordenador do grupo de trabalho sobre aborto inseguro da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia. "Proibir o aborto não acaba com ele. Assim como seria impossível proibir a existência de crianças de rua apenas baixando uma lei que determinasse isso." Tal debate é rico e complexo. Nesta reportagem, ÉPOCA detalha os principais argumentos a favor e contra a legalização. Há afirmações consistentes dos dois lados.
ARGUMENTOS A FAVOR DA LEGALIZAÇÃO
•> O aborto é, antes de tudo, uma questão de saúde pública
•> O aborto é, antes de tudo, uma questão de saúde pública
Esse é o argumento do ministro Temporão. No ano passado, o Sistema Único de Saúde (SUS) realizou 2 mil abortos legais. O número de mulheres que foram ao serviço público para se submeter a raspagens do útero - um procedimento conhecido como curetagem, necessário depois de abortos - chegou a 220 mil. "Não sabemos quantas dessas curetagens resultaram de abortos realizados em condições inseguras. Mas não é razoável imaginar que todas tenham sido derivadas de aborto espontâneo", diz Temporão. Médicos acostumados a receber essas mulheres no serviço público afirmam que o aborto inseguro sobrecarrega o SUS.
Em geral, mulheres pobres e desesperadas com a gravidez descobrem enfermeiras ou pessoas sem nenhuma formação na área de saúde que as ajudam na indução do aborto. O método é precário. Um pedaço de arame ou madeira é introduzido numa sonda de borracha. O instrumento é colocado no útero, e a mulher instruída a voltar para casa. Deve retirá-lo depois de 24 horas e, quando começar a sangrar, procurar um hospital público dizendo que sofreu um aborto espontâneo.
A curetagem é feita nessas mulheres, mas os danos podem ser seriíssimos. Muitas sofrem hemorragias graves, perdem o útero, vão parar na UTI e morrem. Isso explica por que o aborto é a terceira causa de mortalidade materna no Brasil, atrás apenas dos casos de hipertensão durante a gestação (eclâmpsia) e hemorragias não-provocadas. No ano passado, o Ministério da Saúde gastou R$ 35 milhões com a internação dessas mulheres. Ainda não foi feito um estudo para determinar quanto a legalização do aborto custaria aos cofres públicos. Os especialistas estimam que sairia mais barato que atender mulheres em risco de morte.
"Os custos para atender às complicações do aborto costumam ser dez vezes maiores que o necessário para realizar o aborto", diz o estudioso Aníbal Faúndes. A vereadora paulistana Sônia Francine, a Soninha, enfrentou maus bocados por conta de um aborto malfeito. Ela era casada, tinha 22 anos e duas filhas quando decidiu fazer um aborto. "Meu casamento estava no fim. Não podia pensar em ter um terceiro filho se eu e meu marido estávamos a ponto de pular um no pescoço do outro", afirma. Soninha fez o aborto num consultório com anestesia local. O procedimento era uma raspagem e, segundo ela, doía muito. Soninha teve sangramento nos dias seguintes. Foi parar no pronto-socorro. A ultra-sonografia mostrou que ainda havia resíduos de um aborto malfeito. Ela teve de passar por nova curetagem. "Se estamos falando em tirar ou salvar vidas, a clandestinidade custa mais vidas. É preciso descriminalizar o aborto e oferecê-lo na rede pública", diz.
A clandestinidade do aborto é especialmente cruel com as mulheres que não podem pagar por um procedimento seguro e indolor. Mulher nenhuma gosta da idéia do aborto, mas, quando ela tem dinheiro para realizá-lo numa clínica segura, a experiência costuma ser muito menos traumática. Na terça-feira, o Jornal da Globo revelou o funcionamento de uma clínica de alto nível que realiza abortos em Campo Grande. Por R$ 5 mil, a paciente interrompe a gravidez de forma segura e ainda é atendida por uma psicóloga.
Em lugares como esse, a mulher recebe anestesia geral e dorme. Vinte minutos depois, o médico já terminou de aspirar o embrião e a placenta. A paciente acorda e espera duas horas até estar recuperada da anestesia. Depois, pode ir para casa. O risco de complicações, como sangramentos ou necessidade de internação, em abortos como esses é de 2%.
•> A liberdade de escolha da mulher é um direito inviolável
Um dos efeitos mais palpáveis da revolução sexual dos anos 60 foi a legalização do aborto na Inglaterra, nos Estados Unidos, na França e na Itália na década seguinte. As mulheres que conquistaram o mercado de trabalho e assumiram novos papéis na família ganharam também o direito de decidir sobre quando ter filhos.
A oferta de métodos anticoncepcionais não foi suficiente para garantir esse direito, pois não existe contraceptivo 100% seguro. Por mais cuidadosa que seja a mulher, ela pode engravidar sem querer. E, segundo defendem os partidários do argumento da liberdade de escolha, deve ter o direito de decidir levar a gestação adiante ou não. "A legalização do aborto dignifica as mulheres. Tira do limbo um procedimento que é muito mais comum do que imaginamos", diz Ana Maria Costa, diretora do Departamento de Apoio à Gestão Participativa do Ministério da Saúde.
É justo que uma mulher tenha de abrir mão de uma carreira que está começando a construir ou abandonar a universidade concorrida por conta de uma gravidez precoce? É justo para a criança carregar para a vida toda o ônus de ser fruto de uma relação eventual ou de um casal que não poderia sustentá-la com dignidade? As páginas do site de relacionamentos Orkut estão repletas de relatos de adolescentes que vivem esse dilema. Muitas garotas desesperadas perguntam como comprar o medicamento abortivo Cytotec. Ele foi retirado do mercado brasileiro, mas é vendido ilegalmente pela internet. Eis o trecho de um depoimento no Orkut:
"Acabei de passar no vestibular e eh particular, se eu realmente estiver gravida eu vou estragar meu futuro. To pensando seriamente em fazer um aborto. Agora como eu conseguir comprar o cytotec? E eu falar isso pro meu medico sera q ele vai me dar apoio??? tenho muito medo. Meus pais vão me matar...me ajude".
A atriz Cássia Kiss, de 50 anos, também fez um aborto na juventude. Tinha 28 anos e diz não se arrepender. "Você acha que uma pessoa que sofria de bulimia e precisava de ajuda psiquiátrica teria estrutura psicológica para criar um filho? Ainda bem que não tive aquela criança", afirma. Na ocasião, Cássia estava fazendo a novela Roque Santeiro, um dos maiores sucessos da teledramaturgia brasileira. "Dava 100 pontos no Ibope, eu era capa de três revistas por semana. Não podia conceber ter uma criança naquele momento", diz. Hoje, a atriz tem quatro filhos - Joaquim, de 11 anos, Maria Candida, de 10, Pedro Gabriel, de 5, e Pedro Miguel, de 3. "Acho que toda mulher deve ter o direito de fazer um aborto, mas, hoje, eu não faria novamente. Se engravidasse e meu filho viesse com duas cabeças e seis pernas, eu o teria. Hoje, tenho outros valores. Fora da maternidade, não sou nada", diz Cássia.
•>A vida não começa na concepção, e sim com a formação do sistema neurológico
É possível defender a legalização do aborto com um argumento biológico. Essa é a tese do médico e professor de Bioética Marcos de Almeida, da Universidade Federal de São Paulo. Segundo ele, a idéia de que a vida deva ser protegida pelo Estado desde a concepção não resiste à análise do que ocorre cotidianamente no organismo das mulheres. De todos os óvulos fecundados naturalmente, apenas 27% resultam em bebês. A maioria dos embriões é expulsa durante a menstruação sem que a mulher se dê conta disso. Essa eliminação se dá em uma fase muito primitiva, em geral quando o ovo tem de 16 a 32 células (quando é chamado de mórula), ou no estágio seguinte, até cinco dias (quando é chamado blástula). "Se existe uma vida a valorizar desde a concepção, então teríamos o dever moral de resgatar essas pequenas mórulas e blástulas e tentar salvá-las", diz Almeida. Os religiosos costumam dizer que, nesse caso, a expulsão seguiu a vontade da natureza, e não há o que fazer. Almeida discorda. "A medicina faz a toda hora o contrário do que a natureza manda. Não é assim quando salvamos um bebê superprematuro? Esse ponto de vista não me convence", afirma.
Se não é na fecundação, como prega a Igreja Católica, quando começa a vida? O professor diz que não há um marco abrupto. O desenvolvimento do embrião é um processo complexo. Os fetos amadurecem em graus diferentes ao longo do tempo. Na visão de Almeida, o embrião passa a existir como pessoa a partir da ocorrência de conexões entre os neurônios (sinapses). "Isso se dá por volta das 18 semanas de gestação. Só aí o feto pode ter o que chamamos de vida de relação e expressar sofrimento", diz.
Se a lei brasileira considera que o cidadão deixa de existir quando sofre morte cerebral - e, portanto, seus órgãos podem ser extraídos e doados -, o mesmo critério deveria ser aplicado aos embriões, na visão dos que defendem o argumento biológico. A maior parte das religiões combate essa tese. Existem, no entanto, exceções. Para alguns teólogos islâmicos, a alma é criada por Deus apenas no quarto mês de gestação. No judaísmo, há flexibilidade sobre essa questão. Muitos fiéis acreditam que a alma vai sendo colocada no corpo aos poucos, ao longo da gestação. No budismo, existe a busca pelo mal menor e, nos casos de risco para a mãe ou anencefalia do bebê, o aborto poderia ser feito.
ARGUMENTOS CONTRA A LEGALIZAÇÃO
•> Todos têm direito à vida - e ela começa, sim, com a concepção
•> Todos têm direito à vida - e ela começa, sim, com a concepção
O deputado Luiz Bassuma (PT-BA), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida - Contra o Aborto, prepara um grande protesto para o dia 4 de julho, em Brasília. "As mulheres recorrem ao aborto ilegal porque o Estado é frágil no apoio a elas. Somos contra uma consulta popular sobre um direito garantido pela Constituição", afirma.
Ele se refere ao direito à vida, embora a lei não especifique quando essa vida começa. Para o jurista Ives Gandra da Silva Martins, supernumerário da organização católica Opus Dei, não seria preciso especificar. "Isso não foi colocado no texto da Constituição, mas era absolutamente desnecessário. A vida só pode começar num determinado momento. No momento em que somos um zigoto, somos únicos. Não é mais ninguém", afirma. "Se essa vida não deve ser preservada, o Projeto Tamar também não tem de proteger os ovos das tartarugas porque elas não são tartarugas."
O aborto é condenado pelas principais religiões seguidas no Brasil. Católicos, boa parte dos evangélicos e espíritas partilham a idéia de que a vida existe desde a concepção e, portanto, não poderia ser interrompida intencionalmente. No mês passado, o Movimento Nacional em Defesa da Vida, que reúne fiéis de várias religiões, realizou uma manifestação contra o aborto na Praça da Sé, no centro de São Paulo. O público foi estimado em 11 mil pessoas. "É errado dizer que o bebê faz parte do corpo da mulher, e assim ela poderia fazer o que quiser. Eles não têm o mesmo DNA nem o mesmo sangue", diz a advogada Marília de Castro, coordenadora do comitê paulista da entidade.
Dias antes do evento, outdoors espalhados por São Paulo convocavam a população a se manifestar contra a proposta de aborto até os nove meses de gestação - embora o projeto de legalização que tramita no Congresso tenha o propósito de permitir o aborto apenas até o terceiro mês. "A lei não menciona o aborto até os nove meses, mas na prática ele será realizado até os nove meses. No atendimento de saúde pública, vão perguntar para as mulheres pobres: 'Você tem condições de ter este filho? Não? Então, aborta' ", diz Marília.
Na opinião de Humberto Leal Vieira, presidente da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, um grupo ligado à Igreja Católica, o argumento religioso não é o único entre os que condenam a legalização. Para ele, há um interesse racista no aborto. "Ele seria uma forma de eliminar negros e pobres e, com isso, criar uma raça superior", diz. Vieira afirma que, se o aborto for legalizado no Brasil, haverá um comércio de partes do feto. "Nos Estados Unidos existe um mercado de órgãos utilizados em pesquisas. Iríamos instituir esse comércio no Brasil", afirma.
Em sua visão pessoal, a freira católica Ivone Gebara, de 62 anos, filósofa, teóloga e doutora em Ciências Religiosas pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, não concorda com o aborto. Mas defende a legalização para mães sem condições financeiras. Por essa posição, ela foi sentenciada ao silêncio pelo Vaticano. "A violência do aborto é uma questão conflituosa para mim. Respeito o argumento de que a vida tem valor a partir da concepção. Mas, se tenho na minha frente uma menina de 12 anos que foi estuprada, sou obrigada a olhar o mundo em que estou", diz. Ela mora há 20 anos em Camaragibe, periferia do Recife. Em sua trajetória, especializou-se em orientar adolescentes pobres que vivem o dilema do aborto.
O procurador-geral da República, Claudio Fonteles, diz que falta no Brasil uma política pública de preservação da vida. Para ele, as mulheres pobres que cogitam o aborto poderiam ser convencidas a ter as crianças e entregá-las à adoção. Em sua visão, políticas de prevenção como distribuição de camisinhas e anticoncepcionais são apenas paliativas. "O grande problema é a questão filosófica. Estamos vivendo numa sociedade hedonista, do prazer pelo prazer", afirma Fonteles. Segundo ele, é preciso haver educação sexual nas escolas, mas não para distribuir camisinhas. "Valores precisam ser resgatados. É preciso perguntar para as meninas: 'Você acha que com 13 anos de idade é lícito você deitar com um menino que tem sua idade?'", diz Fonteles.
>> O aborto causa danos físicos e psicológicos
Em pelo menos um ponto os partidários da legalização e os que a condenam concordam: mulher nenhuma merece passar por um aborto. Por mais simples e rápido que possa parecer, o ato de arrancar um feto do útero por aspiração é brutal. Os outros métodos (leia o quadro na seqüência da matéria) são ainda mais violentos. Eles provocam alterações físicas e deixam marcas psicológicas. "Mulher nenhuma se esquece do aborto. E é para não esquecer mesmo. É para não fazer de novo", diz a atriz Cássia Kiss.
Segundo a médica Alice Teixeira Ferreira, professora do Departamento de Biofísica da Universidade Federal de São Paulo, o aborto faz com que as mudanças hormonais ocorridas no corpo da mulher para receber o bebê sejam interrompidas de forma brusca. "Isso causa grandes alterações no organismo. Traz conseqüências graves para a função renal e o sistema cardiovascular. Pode até levar a um derrame", diz. Alice afirma que, se o aborto não for feito por aspiração, técnica considerada "mais suave", a mulher pode ficar estéril. Isso porque, usando outras técnicas, há o risco de perfuração da parede do útero na hora da raspagem posterior ao aborto. "Se acontecer perfuração, e não é pouco provável, isso causa uma inflamação que pode levar à morte", diz.
Alice condena também a pílula do dia seguinte, que impede que o embrião se implante no útero. Segundo ela, a pílula é perigosa porque libera uma quantidade de hormônio 200 vezes maior do que temos no corpo. Poderia, nesses casos, surgir um coágulo e embolia pulmonar. "Sou católica, mas minha posição é uma questão médica. Em meu juramento de formatura, em 1967, prometi manter o mais alto respeito pela vida humana, desde sua concepção", afirma.
A bióloga Lílian Pinero Eça, que trabalha com Alice, costuma usar uma analogia dos tempos modernos para explicar o que acontece com o corpo da mulher que aborta: "É o mesmo que arrancar o fio de um computador sem desligar. Dá pau. Nos países onde o aborto é liberado, há um aumento no número de mulheres que se suicidam. Elas caem em depressão".
O aborto causa sempre um grande trauma, diz a psicóloga Teresa Cristina Rebello, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo. "A mulher opta por ele achando que o efeito na vida não será tão grande. Mas ele é devastador", afirma Teresa. Ela diz que, em muitos casos, a dor permanece por toda a vida. A mulher pode sentir culpa, abandono, ter impulsos suicidas. Muitas desenvolvem depressão, pânico, transtornos de ansiedade. Ficam com baixa auto-estima, passam a se preocupar demais com a morte. "Os grupos pró-aborto colocam o ato como um direito, um benefício que deve ser garantido à mulher. Mas isso não é nenhum benefício. A mentalidade pró-aborto vê a gravidez como doença. Isso degrada a imagem da mulher", afirma.
> Não seria melhor investir em planejamento familiar?
Em vez de abrir a polêmica sobre a legalização do aborto, o Ministério da Saúde não seria mais produtivo e eficaz se investisse em ações de planejamento familiar? O acesso dos brasileiros à educação sexual e aos métodos contraceptivos ainda é muito precário. Os resultados de uma pesquisa realizada pela médica Ana Maria Costa, na Universidade de Brasília, são reveladores. Em 2002, ela pesquisou a situação da distribuição de métodos contraceptivos em 95% dos municípios brasileiros. Descobriu que a camisinha era oferecida em apenas 53% deles e que a pílula chegava a apenas 47% das cidades. O DIU, um método extremamente eficaz, era privilégio de apenas 16% dos municípios.
A situação não melhorou nos últimos cinco anos. O ministro Temporão reconhece que o ministério tem falhado na distribuição de anticoncepcionais. Segundo ele, a estratégia de centralizar as compras em Brasília é equivocada porque ocorrem perdas no processo de distribuição. "Temos de rever esse processo. Ele tem de ser feito em parceria com Estados e municípios", diz.
A discussão sobre o aborto está apenas começando. A maioria dos entrevistados por ÉPOCA - a favor e contra a legalização do aborto - discorda da realização do plebiscito. Dizem que a decisão cabe ao Congresso. "Quando a população tem cultura de baixa participação política e pouco esclarecimento, não adianta fazer perguntas complexas", diz o cientista político Octaciano Nogueira. Ele lembra que ditadores como Hitler e Mussolini conseguiram aumentar seus poderes com a ajuda de plebiscitos. E cita um ensinamento do filósofo grego Sêneca (29 d.C.): "A opinião pública pode ser a pior das tiranias".
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